3.4. O problema do “caixa dois” e o “Mensalão”
É de comum acordo, dentre os analistas políticos do caso brasileiro, que os números apresentados nas prestações de contas não refletem completamente a realidade. Existe a desconfiança da existência do chamado “caixa dois” em praticamente todas as campanhas.
Bruno Speck (2003a, p.9) observa que o motivo principal dessa disparidade de informações não está no desconhecimento da legislação ou na tentativa de contornar limites e vetos contidos na legislação vigente. As informações sobre a legislação são detalhadas e abrangentes, e a Justiça Eleitoral procura desenvolver um trabalho contínuo na disseminação desta informação.
Um ponto específico da legislação pode gerar dúvidas no processo do financiamento político, abrindo brechas para possíveis fraudes, qual seja: “todo cidadão poderá contribuir com até mil UFIR para campanhas, sem que estas contribuições precisem ser declaradas na prestação de contas do candidato beneficiado” (Lei Eleitoral, art. 27) (SPECK, 2003a, p.9) – aqui facilita-se a entrada de contribuições anônimas, ainda que somente de pessoas físicas, com a justificativa de tratar-se de aportes não registrados por cidadãos diversos (SPECK, 2003a, p.9).
Aqui toma forma uma importante questão: em sendo a legislação brasileira relativamente liberal no que se refere às doações privadas, e se os candidatos correm o risco de terem sua candidatura ou mandado cassados, caso seja verificada alguma irregularidade, o que motivaria a existência de um “caixa dois”?
Dentre as respostas a este questionamento encontra-se uma bastante grave, referente à origem dos recursos destinados ao “caixa dois”. Normalmente este dinheiro é proveniente de ações ilícitas, tratando-se de dinheiro não declarado da empresa, ou seja, oriundo de sonegação de impostos, tendo origem em um “caixa dois” já dentro da mesma ou dinheiro proveniente do crime organizado; o destino do dinheiro é ilícito, ou seja, trata-se de valores destinados a gastos com cabos eleitorais, compra de votos, etc; ou a motivação da doação é ilícita, tendo como objetivo a compra de favores e influência (SPECK, 2003a; FLEISCHER, 2000). De acordo com David Samuels, as empresas são responsáveis pela maior parte dos recursos disponíveis aos candidatos – valendo ressaltar que são poucas as empresas que doam[1], e sobretudo ligadas a setores econômicos especialmente vulneráveis à intervenção ou regulação governamental, como o setor financeiro (inclui bancos), o setor da construção (dominado por empreiteiras e outras firmas do setor da construção civil) e o setor da indústria pesada (como aço e petroquímicas) (SAMUELS, 2003a, p.372-376). Deste modo, providenciar que as empresas tenham menos incentivos para manterem grandes somas de dinheiro fora do sistema bancário e não declarado ao governo, é uma das únicas maneiras de se eliminar o “caixa dois” (SAMUELS, 2003a, p.386).
O tema do “caixa dois” ganhou grande notoriedade no cenário político brasileiro no ano de 2005 quando, ao final do terceiro ano de mandato do Presidente Lula, a política brasileira defrontou-se com o episódio que é considerado o maior esquema de “caixa dois” já tornado público na política brasileira: o chamado “Mensalão”.
O então deputado e presidente do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), Roberto Jefferson denunciou o esquema, que quase destruiu o governo do Presidente Lula e o Partido dos Trabalhadores (PT). A denúncia ocorreu porque Jefferson confessou que havia negociado pagamentos num total de 20 milhões de reais com dirigentes do PT, mas recebera apenas 4 milhões. Sentindo-se traído, resolveu tornar público o esquema. Esta denúncia acabou desencadeando
uma enxurrada de revelações de fraude, lavagem internacional de dinheiro, financiamentos ilegais de campanhas eleitorais, compra de votos de parlamentares, contratos governamentais ilícitos e o roubo de grandes somas de prefeituras e de bancos, grandes empresas e seguradoras pertencentes ao governo federal, além de investimentos muito suspeitos feitos por fundos de pensão ligados ao setor público (GALL, 2005, p.1).
A maior transferência conhecida de dinheiro até então envolvia R$15,5 milhões pagos à Duda Mendonça, marketeiro da campanha de Lula. Mendonça afirmou, na CPI, que recebera o dinheiro, parte dos R$25 milhões cobrados por ele para desenvolver a campanha de mídia de Lula, sabendo que ele era proveniente de “caixa dois”, mas que era a única maneira de receber o valor que estava pendente. Estima-se que, no total, cerca de 2 bilhões de reais estavam envolvidos no esquema, sem origem definida. Embora pagamentos não registrados e transferências entre contas clandestinas no exterior sejam tolerados há muito tempo na política brasileira, operações de tamanha magnitude e o esquema de pagamento de propinas em valores tão altos em dinheiro foram uma surpresa para a opinião pública (GALL, 2005, p.4).
O PT desenvolveu este esquema com o intuito de conseguir poderes ampliados para Lula e o partido através da compra de votos da oposição, mas as denúncias acabaram com essas expectativas e quase derrubaram o governo. De acordo com autores como Norman Gall (2005) e Francisco de Oliveira (2006) o episódio manchou a imagem de Lula e do PT, sobretudo pelo posicionamento que adotavam até então, resultando em perda do patrimônio ético e moral do partido. Lula era a imagem da esperança de ascensão para brasileiros que se encontravam em classes desprivilegiadas e, tanto ele quanto o partido, levantavam a bandeira de ética e moral na política, denunciando escândalos reais ou não em governos anteriores.
Instaurou-se uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) durante o período de 21 de julho de 2005 e 17 de novembro de 2005, para averiguar as acusações e concluiu-se que houve a distribuição de recursos ilegais a parlamentares com periodicidade variável mas constante durante os anos de 2002 e 2003, ainda que não tenha sido possível definir se essa periodicidade era mensal, como afirmava Jefferson. Diversos membros do governo tiveram seus nomes associados ao escândalo[2].
Bresser-Pereira (2006, p.38) teceu o seguinte comentário sobre o episódio:
O governo Lula e o PT reconheceram as irregularidades, mas tentaram identificá-las com “caixa dois” em campanhas eleitorais, ou seja, com doações de dinheiro não declaradas ao fisco e aos tribunais eleitorais. Dessa forma, o PT estaria fazendo algo usual no processo de financiamento de campanhas eleitorais. Ao longo desse escândalo, porém, foi ficando claro que o processo envolvia corrupção stricto sensu, seja pela compra de votos de deputados de outros partidos, seja pelo fato de os recursos provirem de empresas estatais cujos contratos de publicidade eram sobrefaturados ou de fornecedores do Estado, que compensavam as doações com sobrefaturamento dos serviços. Além disso, não se tratava de simples financiamento de campanhas eleitorais, já que o sistema passou a fazer parte do governo federal, como antes fizera parte dos governos municipais em que o PT elegera o prefeito. (BRESSER-PEREIRA, 2006, p.38)
Em entrevista concedida em 2005, o Presidente Lula, tentando “minimizar” o episódio, declarou que “o que o PT fez, do ponto de vista eleitoral, é o que é feito no Brasil sistematicamente” (GALL, 2005, p.5). Tal declaração remete a uma outra declaração dada em meio a outro grande escândalo político vivido pelo Brasil pós-redemocratização – a renúncia de Fernando Collor de Mello, em 1992, primeiro Presidente eleito da história da América Latina a sofrer impeachment, após a descoberta de um esquema de grandes proporções de pagamento de subornos e comissões ilícitas ao seu governo – por Paulo César Farias, tesoureiro da campanha de Fernando Collor de Mello, próximo ao julgamento de impeachment, quando ele fez a seguinte declaração na CPI: “Estamos todos sendo hipócritas. Ninguém obedece à lei do financiamento de campanhas”.
Sem dúvida alguma a maneira como o financiamento de campanhas parece ser encarado por políticos e demais atores envolvidos na política brasileira, é alarmante. As declarações acima nos remetem à idéia de falta de fiscalização e de impunidade presente no sistema político brasileiro. Trata-se de uma cultura política corrupta e deteriorada, arraigada na classe política, que pede medidas urgentes para que o financiamento político possa ser encarado sob seu aspecto mais nobre: o de fundos para promover a competição política livre, igual e justa, e não como uma maneira de colocar em prática atos corruptos e ilegais, de suborno, compra de acesso e compra de influência, dentre outros atos ilícitos.
Face aos problemas enfrentados, o debate contido no Projeto de Lei 2679/03, que propõe o fim do financiamento privado no Brasil e a exclusividade do financiamento público, ganhou força no cenário político brasileiro (ABRAMO, 2005, p.6).
[1] Aqui Samuels (2003) chama a atenção para o fato de, além das empresas dominarem o cenário das doações a candidatos políticos, tanto as doações provenientes de pessoas físicas quanto as provenientes de pessoas jurídicas estão concentradas em poucos doadores. Poucas pessoas físicas fazem doações, em comparação com a população total do país, e muitos dos contribuintes são parentes do candidato, pois possuem o mesmo sobrenome (Samuels chegou a esta conclusão analisando os dados do TSE de 1994 e 1998), e relativamente poucas empresas fazem doações por candidato. Esta situação reflete o cenário socioeconômico do Brasil: poucos são os doadores, porém doam altos valores, espelhando a distribuição desigual de renda presente no país.” Uma porcentagem muito pequena da população do país possui uma receita disponível suficiente para querer e poder influenciar o processo político, mediante consideráveis quantias doadas para fundos de campanha” (SAMUELS, 2003, p.381).
[2] Dentre as figuras mais abaladas com o escândalo destacam-se o então Ministro da Casa Civil, José Dirceu, e o então presidente do PT, José Genoíno. José Dirceu foi apontado como sendo um dos “cabeças” do esquema e foi acusado por Jefferson de chefiar indicações para cargos em estatais com o objetivo de captar recursos para o PT. Dirceu deixou o Ministério e perdeu seus direitos políticos até 2015. José Genoíno foi denunciado por corrupção, acusado de negociar o pagamento a parlamentares em troca de apoio político. Renunciou à presidência do partido e foi eleito deputado federal em 2006 (Folha Online de 09/09/2005).
[Retirado de Igualdade política e financiamento de campanhas eleitorais, Cristiane Rachel Pironi.]